Pelos menos três fontes de água potável existentes em São Gonçalo foram classificadas como milagrosas, seja pela crendice popular, seja pela exploração comercial: uma no Porto Velho, outra no hoje denominado bairro Água Mineral (e que já se chamou Águas Francesas) e a terceira em Itaitindiba, na antiga zona rural. Afora outras, consideradas medicinais, mas que não tiveram a exploração miraculosa, como a encontrada na fazenda do juiz de paz Justiniano Vargas de Faria, em Cordeiros, ferruginosa e aproveitada como tônico em diversas afecções, na década de 1830. 

Interessa-nos, aqui, aquelas fontes consideradas milagrosas, ou seja, as de Itaitindiba, do Rocha e do Porto Velho.

A fonte do Porto Velho resultou na construção de uma igreja e, curiosamente, é a terceira e mais recente delas. Trata-se da nascente no alto do morro a que se tem acesso pela Rua Prefeito Américo Ribeiro, no bairro de Porto Velho. Desde princípios do século XX, as pessoas ali iam para beber da água que as curava de um tudo, de acordo com a fé que tinham e que tornavam pública. Era 1947 quando os vizinhos Manoel Silva e Rodolfo José de Rosa, moradores da Rua Lenor, 273 e 354, foram a Urucânia (MG), em busca de melhoria para sua saúde, na Igreja de Nossa Senhora das Graças, dirigida pelo padre Antônio Pinto. Sentiram-se melhor e fizeram a promessa de construir uma capela daquela devoção em sinal de agradecimento. Reuniram-se logo depois com outros paroquianos e foi criada a primeira comissão, presidida pelo alfaiate Antônio Félix Cardoso, conseguiram a doação do terreno pelo seu proprietário, advogado Cícero Nobre Machado, secretário da Companhia Nacional de Navegação Costeira, e iniciaram a construção da (então capela) Igreja de Nossa Senhora das Graças, para que nela fossem celebradas missas dominicais pelo pároco de Santo Antônio, na Covanca, a que estava subordinada. Eis que, em seis de março de 1949, no pequeno altar montado para a celebração religiosa, enquanto prosseguia a construção, Francisco Pereira Dias, de 53 anos, morador na Rua Lafaiete, 58, subiu ao altar com uma bengala e desceu sem ela. “Seu” Chico morava no Rio e trabalhara na firma Campos Silva & Cia, de onde saiu em 1945 e foi trabalhar como marmorista, quando teve, em 1947, paralisia do lado esquerdo do corpo e foi morar com as filhas Edméia e Juraci, no Porto Velho. Declarado incurável pelos médicos, no segundo semestre de 1948 fez as novenas de novembro na capela em construção e alcançou a cura em março de 1949. O boato de milagres intensificou-se a partir daí e atingiu o território nacional, exponenciando as romarias vindas de várias partes do país, com grande repercussão na imprensa. Seu crescimento foi tal que a paróquia acabou por ser criada em 22 de junho daquele mesmo ano mediante decreto episcopal de dom João da Matta Andrade e Amaral, bispo de Niterói. Até hoje, a água continua a brotar, mas já sem o apelo milagroso, desestimulado pelos religiosos que comandaram aquele templo desde então, o que não tem impedido a busca por fiéis, ainda nos dias atuais.

Duas outras, sem caráter religioso, porém com grande simbolismo político e social, são as que eram conhecidas desde o princípio do século XIX em Itaitindiba e no Rocha, esta última um conjunto de fontes que dava ao local a denominação de Águas Francesas, cultivada pela família Malafaia e que se perdeu com o tempo depois de sua utilização industrial. O local chegou a ser ameaçado de ter sua natureza afetada quando, na sessão da Câmara Municipal de Niterói, de 26 de julho de 1875, o médico e vereador Antônio do Nascimento Silva propôs a sua compra aos herdeiros de Rosa Furtado da Costa para ali instalar um cemitério. Custaria 800$000, mas o Legislativo não dispunha do dinheiro e o negócio não foi adiante, com o que as fontes ficaram preservadas.

Quem percebeu o potencial daquele recurso natural, já no século XX, foi Pedro Rodrigues Pinto (1887/1966), tipógrafo, jornalista, advogado, loteador de áreas privadas, gerente do Banco Comercial e Industrial de Niterói e funcionário da prefeitura niteroiense. Comprou a área dos herdeiros de dona Rosa, em 1929, e logo depois anunciou haver descoberto uma fonte de água mineral. Marqueteiro de primeira, ele colocou a área à disposição da Federação dos Escoteiros Fluminenses para acampamento, começou a levar secretários estaduais, prefeitos, dirigentes católicos e evangélicos e outras figuras de destaque até lá, além de distribuir a água a pessoas influentes e divulgar seus elogios, como ocorreu com o futuro escritor Rubem Braga (1913-1990) e o tribuno Maurício de Lacerda (1888-1959). Providenciava publicações dos efeitos milagrosos na saúde de seus usuários, entre eles o poema “Água Milagrosa da Fonte do Rocha”, de Adalberto Nicoll. E divulgava as doenças para as quais a água era apropriada, como se fazia com todas as águas minerais da época, chamadas de “virtuosas”, no caso mineiro.

Pedro Pinto começou a distribuir a Água Mineral São Gonçalo ao comércio de Niterói e São Gonçalo em nove de julho de 1930, cinco meses depois de colocar caminhões na prefeitura para conduzir a população gonçalense para lá, até que o empresário Agenor Pacheco da Silva, nascido no bairro do Rocha e dono da Garagem (como se chamava à época o que é hoje agência de automóveis) São Lourenço, de Niterói, instalasse uma linha de ônibus naquele trecho, o que só ocorreu em 29 de junho, quando Eugênio Silva, estimulado e financiado por Agenor, lançou a empresa Auto Comercial. Pedro prosseguiu no marketing do produto, com a criação da Filarmônica de São Gonçalo, composta por seus funcionários, festas com a Miss Estado do Rio, Maria Nazareth Lamego Viggianni, e a Miss São Gonçalo, Maria Augusta de Aguiar. Seus olhos brilharam quando, em setembro de 1931, lá estiveram Horácio Papert, Roberto Vance e Júlio Pimentel, acompanhados dos doutores Isaac Garson e Antônio Rezeck, que identificaram e recolheram pedras com bórax (borato de sódio decaidratado, cristalino, usado como antissético), enviando-as a exame na Europa, que concluiu ser pequena a concentração e sem interesse industrial, portanto. Em compensação, naquele mesmo ano de 1931, em dez de outubro recebia o Grande Diploma de Honra e atestado de qualidade da água mineral, conferidos pelo Instituto Agrícola Brasileiro, e quatro dias depois o Diploma de Grande Prêmio da Exposição Agrícola e Industrial de São Gonçalo, realizada pouco antes pela prefeitura e o governo do estado. Só em 29 de junho de 1932, data de seu aniversário, Pedro Pinto inaugurou a fonte com grande festa.

             Porém, ela não gerava recursos financeiros suficientes, daí porque Pedro Pinto obteve do prefeito Miguelote Viana, em outubro de 1933, pelo ato nº 40, autorização para o funcionamento de cassino na Estância Hidromineral, o que de nada adiantou, tantas as exigências feitas pela prefeitura. Por isso, o empresário tentou diversificar, com o plantio de amoreiras destinadas à produção do bicho da seda, e obteve do prefeito Samuel Barreira isenção de impostos municipais, que viria a ser cassada pelo prefeito Miguelote Viana, ao retornar ao cargo, pelo ato nº 24, de setembro de 1935. A esta altura, o governo federal baixou decreto proibindo que as águas minerais divulgassem seus pretensos poderes curativos e determinou que todas fossem submetidas a novo exame laboratorial para comprovar sua composição, obrigatória nos rótulos. No princípio de 1940, a produção já estava suspensa, quando Pedro Pinto decidiu vender a Estância Hidromineral São Gonçalo, em três de setembro, a Adolpho Dourado Lopes e Domingos Oliveira da Silva. Estes conseguiram autorização do governo federal, em três de dezembro, para a exploração da mina, adquiriram novos equipamentos, instalaram-nos e retomaram a produção em abril de 1942, embora só viesse o primeiro deles obter a renovação da concessão de exploração da água mineral em 15 de março de 1944. A empresa prosperou (teve até um time de futebol importante, à época, em São Gonçalo), mas começou a decair com a entrada de produtos de outros estados, a preços mais baixos, na década de 1950. Dez anos depois, foi vendida ao empresário gonçalense Jair da Silva Pessoa, o “Didico”, que não conseguiu salvá-la da contínua decadência causada pela concorrência, até que encerrasse de vez a produção. O patrimônio passou a fazer parte do espólio dos bens deixados por “Didico” e foi vendido, em 2012, para o empresário Domenico Lorusso, também da área de transportes coletivos.

Quanto à fonte de Itaitindiba, sua história começa com a construção da sede da fazenda pelos jesuítas, nos anos 1600, e depois por eles abandonada quando o futuro Marquês de Pombal expulsou das terras portuguesas os membros daquela ordem religiosa. Sua propriedade posterior só é identificada no princípio do século XIX, quando pertencia a dona Francisca Egídia de Bustamante Alvarenga, sogra e tia do comendador José Joaquim Ferreira de Alvarenga, também fazendeiro na região e que juntou as duas propriedades quando do falecimento daquela fazendeira. Importante figura na política da cidade (foi o primeiro Chefe de Executivo do município emancipado em 1890 e é nome de rua no bairro do Gradim), o comendador Alvarenga usava a fazenda também para servir aos amigos, graças à excelente água de fonte que ali existia; era comum casais passarem a lua de mel lá, como ocorreu com o inspetor geral da instrução pública do Estado, Norberto Pereira Pinto, ao se casar com dona Isabel Marques da Silva em julho de 1890, ou outros irem ali para recuperar as energias, como ocorreu com o cônego João Ferreira Goulart em 1894 (após passar vários dias preso durante a Revolta da Armada). Com a saúde debilitada, o comendador Alvarenga mudou a residência para o Fonseca, em Niterói, em maio de 1896, pouco após vender a fazenda para o padre Manoel Joaquim Henriques de Azevedo Farias.

Natural de Maricá, o padre Manoel Joaquim ali exercia o seu apostolado e possuía muitas terras (até hoje é conhecida a Serra do Padre), influenciando a política e os negócios. Nestes, o principal foi tornar-se incorporador da Estrada de Ferro Maricá, em 1886, juntamente com o vigário Sebastião de Azevedo de Araújo Gama e o barão de Inoã (José Antônio Soares Ribeiro, 1836/1906). Logo depois, rompeu com este último (que o substituiu na sociedade pelo próprio pai, o fazendeiro Antônio Joaquim Soares Ribeiro) e, em outubro de 1889, mudou a residência para Niterói, mais precisamente Porto da Madama (São Gonçalo ainda não fora emancipado). Em maio de 1896, adquirira a fazenda de Itaitindiba e, ao falecer em 25 de setembro de 1910, deixou-a para seus filhos com dona Amélia Cândida de Azevedo Alves, Américo (que fora vereador e viria a ser delegado de polícia de São Gonçalo) e Manoel de Azevedo Farias, e sua filha com dona Alexandrina Ana de Jesus, Alice. Coube à nora Laura Soares de Farias (casada com Américo, que recebera a fazenda como sua parte da herança), com a morte do marido, assumir o controle da fazenda em 1920, e em junho do ano seguinte ela anunciou a descoberta da fonte (embora já fosse conhecida desde cem anos antes, pelo menos), provocando intensa romaria de pessoas que ali iam em busca de cura para suas doenças. Tentando dar uma dupla solução ao problema (afastar os visitantes e obter recursos financeiros com a fonte), assinou contrato com o empresário Luiz Tinoco (Luiz Antônio Ferreira Tinoco) em 1923 para que as águas fossem exploradas industrialmente. O projeto não foi adiante e, em fevereiro de 1938, seu filho Luiz Américo conseguiu autorização do ministério da Agricultura para pesquisar argila, calcário e água mineral na fazenda, o que resultou, em quatro de dezembro de 1947, em concessão do governo federal para explorar a fonte, criando-se a indústria Águas de Itaitindiba Limitada. Dona Laura recebia em suas terras os membros da Guarda Nacional e dos Tiros de Guerra para exercícios, como ocorreu em 30 de abril de 1920, quando ofereceu café da manhã e almoço aos integrantes do Tiro de Guerra nº 15, de Niterói, que até ali foram em “raid” de resistência. É dela, também, o mérito de haver doado, em abril de 1948, as terras para a construção da Escola Estadual de Itaitindiba.  Viúva e já então com a morte, em nove de janeiro de 1956, de seu único filho, o dentista e coronel reformado do Exército, que integrara a Força Expedicionária Brasileira (FEB) na II Guerra Mundial, Luiz Américo Soares de Farias, dona Laura faleceu no final da década de 1950, com o que a fazenda passou a seus netos, os quais a venderam em 1969 para o advogado Alfredo Jorge Santos Magalhães e sua mulher, dona Ilka Magalhães. A água continua a jorrar, mas sem proveito industrial e sem milagres.

 

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Fontes:

Revista Médica Fluminense, nº 3, junho de 1839, p. 11.

             Relatório do Ministério do Império, de 1838, p. 19, divulgado em 1839.

            A Pátria, 30-09-1875, p. 3, ata da sessão da CMN de 26-07-1875.

            O Fluminense, 31-05-1896, p. 1; 30-10-1889, p. 4; 26-09, p. 2 e 3; 28-09, p. 2; 29-09, p. 3; e 19-10-1910, p. 3; 18-06-1921, p. 2; 31-12-1927, p. 1; 08-02, p. 1, 19-02, p. 1, 20-04, p.1, 23-04, p. 1, 08-05, p. 10, 10-05, p. 1, 15-05, p. 1, 17-06, p. 1, 09-07, p. 1, 03-08, p. 1, 23, 24 e 30-08, p. 1, e 16-10-1930, p. 1; 11-02, p. 1, 10-07, p. 1, 06-08, p. 1, 04 e 24-09, p. 1, 10, 14, 25 e 31-10-1931, p. 1; 22-06, 06-07 e 10-12-1932, p. 1; e 15-04-1948, p. 1.

             O Imparcial, 05-05-1920, p. 12.

             O Estado, 13-09-1923, p. 2.

             A Gazeta, 21-11-1929, p. 1.

             O São Gonçalo, 22-01, p. 7, 18-07, p. 3, e 31-08-1941, p. 1; 10-04-1942, p. 2; e 25-09-1949, p. 1; 12-01-1956, p. 1.

             Revista da Semana, 23-04-1949, p. 15, 16, 17, 18 e 52.

             Diário da Noite, 23-02-1949, p. 10; e sucessivas edições até o mês de abril.

             A Noite, 17-03, p. 1 e 11; 19-03, p. 1 e 2; 21-03, p. 1 e 8; e 22-03-1949, p. 7.

             Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro, 16-10-1933, p. 11; 24-09-1935, p. 12; e 11-02-1938, p. 1.

            Decretos federais nº 15048, de 15-03-1944; nº 24167, de 04-12-1947; e nº 39462, de 27-06-1956.

            Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), seção de Niterói.

            Site da Igreja de Nossa Senhora das Graças, acessado em 23 de março de 2012.

            Monsenhor José Geraldo Pinto da Silva Souza, pároco de N. S. das Graças.

            Jorge Luiz Ferreira da Silva, membro da Pastoral Litúrgica da Igreja de N. S. das Graças.

            Jason da Silva Pessoa, empresário.